Quem nunca ouviu que a escrita revela muito sobre uma pessoa? Para quem tem deficiência auditiva, no entanto, essa revelação pode ser injustamente interpretada. Embora muitos escutem e falem normalmente, é comum que enfrentem barreiras silenciosas na hora de colocar as palavras no papel. Substituições de letras, confusão com regras gramaticais e falhas de concordância são situações recorrentes que, segundo diversos estudos, podem sim estar relacionadas à perda auditiva — mesmo em adultos alfabetizados.
O impacto da audição na linguagem escrita
A audição tem papel fundamental no desenvolvimento da linguagem, inclusive da escrita. Desde cedo, aprendemos a falar e escrever ouvindo. Sons, entonações, ritmos e pausas ajudam a formar nosso vocabulário e estrutura frasal. Quando há uma deficiência auditiva — mesmo moderada —, esse processo natural sofre interrupções ou desvios.
Uma pesquisa publicada na revista Reading and Writing (Springer) analisou a escrita de jovens adultos com deficiência auditiva e concluiu que eles apresentavam erros ortográficos e morfossintáticos mais frequentes. Em outras palavras: trocas de letras, dificuldades com concordância e construção frasal não são apenas “erros” — são parte do processo de escrita de quem vive com a deficiência.
Outro estudo, publicado no Journal of Communication Disorders (ScienceDirect), mostrou que adultos com perda auditiva congênita moderada a severa enfrentam desafios na produção escrita por causa das limitações de percepção auditiva desde a infância. Essas limitações impactam diretamente o domínio da gramática e da estrutura da língua.
A escrita como desafio contínuo
Um dos pontos mais importantes destacados pelas pesquisas é que essas dificuldades não desaparecem com o tempo. Mesmo após a alfabetização, os efeitos da deficiência auditiva seguem presentes na vida adulta. Isso porque a escrita é construída com base no que ouvimos ao longo da vida. Se essa audição é parcial ou limitada, a escrita sofre.
A pesquisadora Simone Aparecida Capellini, em estudo publicado pela Revista Brasileira de Educação Especial (Scielo), observou que crianças com deficiência auditiva enfrentam obstáculos no desenvolvimento da linguagem escrita, que vão desde a construção frasal até a organização textual. Isso pode se manter por toda a vida se não houver intervenções específicas.
E não para por aí…
Pesquisas como a de Lemos e colaboradores (2013), publicada na Revista CEFAC (Scielo), apontam que pessoas com deficiência auditiva podem apresentar dificuldades até mesmo em aspectos mais simples da escrita, como pontuação, acentuação e ortografia. Os erros mais comuns? Omissão e substituição de letras — justamente o que muitos adultos relatam no dia a dia.
Isso significa que a pessoa “não sabe escrever”? Longe disso.
As dificuldades relatadas não significam que a pessoa não domina o conteúdo — ou que não conheça a grafia correta das palavras —, mas sim que, em determinados momentos, escreve com base na mentalização da sua fala, ou seja, na forma como escuta e interpreta os sons. Essa forma de escrita é profundamente influenciada pela percepção auditiva individual e pode ser afetada por questões sensoriais. E isso, por si só, já é motivo suficiente para que haja mais empatia, compreensão e, principalmente, políticas educacionais e profissionais que levem em conta essa realidade.
O estudo “Spelling in Deaf, Hard of Hearing and Hearing Children With Sign Language Knowledge”, publicado na Frontiers in Psychology, mostra que estratégias de ensino personalizadas, que reconheçam os desafios específicos da população surda ou com perda auditiva, são essenciais para o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita.
Uma escrita marcada pela escuta limitada
Para pessoas com deficiência auditiva moderada — como é o caso de muitos brasileiros —, os erros na escrita não são falhas de inteligência, mas reflexo de uma escuta limitada ao longo da vida. Mesmo que consigam se comunicar oralmente, a ausência de uma audição completa compromete o reconhecimento de sons, o que impacta diretamente a ortografia e a gramática.
Essa realidade, infelizmente, ainda é pouco reconhecida socialmente. Muitas vezes, adultos com deficiência auditiva são cobrados e julgados por sua escrita sem que se considere o contexto da deficiência — o que é não só injusto, como capacitista.
Escrever é um direito, não um julgamento
Mais do que nunca, é hora de ampliar a discussão sobre inclusão linguística. Reconhecer que a deficiência auditiva pode influenciar a forma como alguém escreve é um o essencial para garantir igualdade de oportunidades — seja na educação, no mercado de trabalho ou nas interações cotidianas.
A escrita deve ser vista como expressão legítima da experiência de quem a produz. E, para pessoas com deficiência auditiva, ela carrega também a marca da superação de um mundo que ainda insiste em não escutar — nem com os ouvidos, nem com o coração.
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